Ibrahim Kalin: “A era do caos contagioso”

A análise de Ibrahim Kalin, o porta-voz da presidência da Turquia: “A sabedoria coletiva e a virtude são as únicas soluções que ajudarão o mundo a resolver as crises atuais, que estão na origem de um caos contagioso”.

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Ibrahim Kalin: “A era do caos contagioso”

Os problemas globais atuais, são um sintoma do mau funcionamento do sistema, ou é o próprio sistema que não funciona? Os otimistas poderão escolher a primeira opção e considerar que tudo vai melhorar e que pessoas mais sábias irão pôr em prática um sistema mundial atual que seja capaz de garantir a paz, a estabilidade e a prosperidade de todos. Mas o problema ultrapassa tudo isto.

O estado atual do caos no mundo é contagioso. Isto afeta tudo e todos no mundo. O caos desloca-se de uns países para outros e de região em região. O mundo tornou-se tão interdependente, que ninguém pode dizer que está imune às crises penetrantes da nossa era, independentemente de onde elas emergem.

A promessa do Iluminismo revelou ter um alto custo: o colonialismo europeu, a destruição das formas tradicionais de associação social e política numa grande parte do mundo muçulmano, em África e no Sudeste Asiático, as duas guerras “mundiais” (que foram essencialmente guerras europeias), e ainda o período da guerra fria e as suas consequências. O fosso entre os ricos e pobres vai crescendo e aprofundando-se, bem como o sentimento de desconfiança e desespero em centenas de milhões de pessoas desfavorecidas. O capitalismo continua a renovar-se em todas as ocasiões com um custo pesado para os pobres e para o ambiente natural. O capitalismo alimenta-se da mão de obra barata e segue-a onde quer que ela se encontre, ou seja, em África e no Sudeste Asiático.

A globalização representou uma promessa de redefinição e reorganização de tudo: da história, das memórias, da sociedade, da política, da comunicação, da economia, educação, da religião, das crenças , da arte, etc.

A grande expetativa era de que as fronteiras rígidas da identidade individual e das comunidades fossem substituídas por um sentimento de cidadania mundial, no qual todos se sentiriam, acreditariam e viveriam num mundo mais ou menos semelhante. Francis Fukuyama encontrou um nome para este novo mundo: o fim da história.

Mas o fim da história nunca aconteceu. Tendo em conta as complexidades da época em que vivemos, seria sensato que todos nós evitássemos qualquer espécie de “fatalidade”. No seu lugar, nós deveríamos concentrarmo-nos nas melhores práticas para pôr um fim à injustiça e à igualdade, e pormos em prática os valores da razão, da sabedoria e da virtude o melhor que pudermos e soubermos. O primeiro princípio a observar é a interdependência do sistema mundial atual. Isto significa que nenhum ator pode reivindicar a vitória em batalhas autodestrutivas que levam à destruição de todos. Em consequência disto, é moralmente falso e autodestrutivo defender o interesse próprio em detrimento dos interesses dos outros. A sabedoria e a justiça não são apenas virtudes morais e intelectuais. Com um pouco de sabedoria, chegaremos à conclusão de que se trata também de uma necessidade política.

As questões da justiça mundial e da igualdade não são problemas que se limitam aos países pobres e em dificuldades. Pelo contrário, são problemas que devem ser resolvidos nos países mais ricos e poderosos do mundo. O motivo desta situação está na lacuna atual de poder e no desequilíbrio – que é uma herança do colonialismo dos últimos séculos – e que não poderá ser ultrapassado a menos que não seja criada em primeiro lugar uma assunção da responsabilidade. O facto do capitalismo precisar de mão de obra barata, não justifica a exploração dos seres humanos como máquinas sem alma.

No plano político, as guerras travadas por terceiros em curso no Médio Oriente, em África e noutros locais, não trarão a paz, a estabilidade ou prosperidade a ninguém. Estas guerras não terão outra consequência que não o aprofundar da miséria, dos ressentimentos e fará com que o poder caia nas mãos dos extremistas violentos que procuram oportunidades para perturbar qualquer hipótese de paz e de estabilidade nos locais onde eles operam. A luta contra o terrorismo exige um esforço global coordenado, mas acima de tudo, terá que ser uma luta honesta e sincera. O caos criado pelo terrorismo é também contagioso.

E chegamos então finalmente às grandes questões da identidade, da perceção de nós próprios e da visão do mundo. Os seres humanos mantiveram uma certa forma de identidade de si mesmos e uma visão dos outros no contexto da sua ligação ao mundo. O estado atual de caos contagioso e de insegurança não mudou esta situação, mas transformou-a. Nós vivemos em simultâneo um processo de urbanização desenraizado e de nativismo, de globalização e de localização, de redes sociais e de individualismo extremo. É talvez uma das questões mais importantes da nossa época: que nós vivamos estes sentimentos contraditórios de forma tão intensa e tão confusa, que nenhuma pessoa sabe exatamente como traçar uma linha no meio deste caos de insegurança, de imprevisibilidade e de desespero. Os discursos populistas, xenófobos e racistas apelam aos maus sentimentos e aos políticos com uma visão enviesada, que exploram estes sentimentos. Mas estes ganhos políticos de curto prazo tornam o mundo ainda mais instável e caótico.

As duas últimas décadas de globalização mostraram sem qualquer dúvida que as questões de identidade, de lealdade, de memória coletiva e de sentimento de pertença cultural e religiosa não irão desaparecer. Nem é necessário que estes elementos desapareçam. Pelo contrário, eles podem ser uma fonte de sabedoria coletiva e de força contra o assalto do caos contagioso que rasga o mundo.



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