A fragmentação mental e espiritual do mundo muçulmano

O mundo muçulmano tem que recuperar do seu estado de empobrecimento e reconstruir o seu habitat intelectual e moral.

722275
A fragmentação mental e espiritual do mundo muçulmano

Artigo escrito pelo porta-voz presidencial da Turquia, Ibrahim Kalin, e publicado no Daily Sabah a 26 de abril de 2 017.

O mundo muçulmano sofre de desnutrição, pobreza e má gestão. A fragmentação política estende-se ao longo dos territórios que os antigos eruditos chamaram de “Darul-Islam” – a Terra da Paz. As guerras civis, os conflitos sectários e tribais, as ocupações, as intervenções militares, os estados falhados e os governos frágeis, desperdiçam os recursos naturais e as pessoas dos países muçulmanos.

Por outro lado, o que mais preocupa é a divisão política e a desunião, que resulta da fragmentação mental e espiritual que arrasta o mundo muçulmano atual para o abismo.

Os impérios muçulmanos, os estados e os emirados, tiveram a sua quota parte de diferenças políticas e rivalidades de poder. Mas a imaginação social que mantém unidas as comunidades muçulmanas, dos Balcãs a África e do Médio Oriente até ao Sudeste Asiático, sempre foi forte. Partilhar a mesma perspetiva intelectual e espiritual era a maior força da umma (comunidade de crentes no islão).

O que unia o mundo muçulmano, mental e espiritualmente, superava as diferenças políticas, étnicas e sectárias. O mundo muçulmano atual precisa de recuperar este espírito.

A perspetiva intelectual e a imaginação social das sociedades muçulmanas tradicionais, era assente na unidade divina, na justiça e na virtude. Além disso, o amor divino e o amor face ao outro eram outros fundamentos desta situação, em virtude da misericórdia e do perdão infinito de Alá. Os seres humanos têm que amar Alá, o mundo natural e os outros seres humanos como parte da sua fé. O mundo foi dados aos seres humanos como uma “confiança” (amanah) e espera-se que cuidem do mundo com base nessa confiança. Esta visão cósmica, é ao mesmo tempo defendida pela transitoriedade e pela contingência do mundo. Este “mundo” em que vivemos não se mantém por si só. Não é uma substância autossuficiente. Existe para servir um fim e isso permite que os seres humanos finitos tenham fé, justiça e virtude neste mundo. Só as nossas boas ações podem medir a nossa humanidade.

Esta visão particular do mundo e o seu significado para os seres humanos, penetram em todas as ações humanas no mundo muçulmano. Todos, desde um simples camponês ou sapateiro, até aos grandes arquitetos, eruditos, comerciantes e políticos, respiravam o ar intelectual e espiritual da realidade transcendente, que vai para além das tribulações e provas deste mundo. Os exércitos, guerras e impérios iam e vinham, mas o tecido moral das comunidades muçulmanas sempre sobreviveu.

Não é uma coincidência que o mundo muçulmano tenha produzido algumas das suas maiores obras de ciência, arte e erudição durante e depois dos principais ataques às suas terras, durante as cruzadas e invasões mongóis. Os cruzados tomaram Jerusalém em 1 099 e ensanguentaram esta terra sagrada, de uma forma nunca antes vista. Os mongóis destruíram tudo o que encontraram pelo caminho e desmantelaram o então poderoso império abássida em 1 258, e transformaram as ruas de Bagdade num banho de sangue durante dias.

A guerra política entre muçulmanos continuou quase sem diminuições nos séculos XII e XIII e para além destes. Mas nada disto impediu o surgimento e o florescimento de uma vasta lista de luminárias muçulmanas, em todos os campos da ciência intelectuais e espirituais: Al Ghazali, Fakhr al-Din al-Razi, Al-Suyuti, Ibn Sina, Ibn Rushd, Ibn Hazm, Ibn Tufayl, Ibn Bajjah, Mawlana Yalal al-Din Rumi, Ibn al-Arabi, Suhrawardi, Al-Biruni, Nasir al-Din al-Tusi, Ibn Jaldún e muitos outros, construíram uma civilização universal, apesar das turbulências políticas e militares que os rodeavam.

Os conflitos políticos de grande escala e os confrontos militares tornaram-se num custo para a vida das pessoas comuns, bem como para as comunidades académicas e artísticas. Mas isto nunca foi desculpa para justificar a preguiça intelectual e o conformismo moral. Pelo contrário, os líderes intelectuais e espirituais da umma, transformaram as crises em oportunidades para serem mais criativos, mais resistentes e mais responsáveis.

Não esperavam que se resolvessem as crises políticas e militares para criarem as suas obras. Pelo contrário, a resistência e a continuidade das obras duradouras, ajudaram a mitigar os conflitos políticos de longo prazo.

É verdade que os filósofos, cientistas e os artistas muçulmanos tiveram os seus pontos de vista específicos, desacordos e disputas. Mas partilharam uma perspetiva intelectual e imaginação social comum, que manteve uma tradição científica e artística durante séculos. Eles trabalhavam num ambiente conceptual que mantinha o princípio da “unidade na diversidade” (wahdah fi’l-kathrah). Defendiam que a unidade não é uniformidade e que a diversidade não é o caos.

Sabemos que a unidade e a integridade neste ponto de vista intelectual e espiritual, se perdeu no mundo muçulmano de hoje. Os eruditos muçulmanos não estão profundamente ligados à sua própria tradição, nem se sentem confortáveis com a nova visão cósmica da modernidade secular. Estão divididos entre um passado glorioso, um presente conflituoso e um futuro incerto.

Paradoxalmente e também tragicamente, as identidades nacionais, culturais e sectárias enegrecem as nossas perspetivas e respostas num mundo globalizado e emergente. O resultado é uma fragmentação mental e espiritual, que tem um alto preço: aprofunda as diferenças e divisões existentes, gera uma maior alienação e conduz a conflitos intermináveis.

O mundo muçulmano tem que recuperar do seu estado de empobrecimento e reconstruir o seu habitat intelectual e moral. Ao estar firmemente ancorado na sua própria tradição e raízes, tem que se aproximar do mundo com uma perspetiva ampla. A desunião política apenas poderá ser superada quando se recuperar um conjunto de princípios comuns, para dar sentido ao mundo em que vivemos.



Notícias relacionadas